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sábado, 3 de agosto de 2013

Os fins do Direito (1) 4

Não são necessárias longas provas para demonstrar que a segurança jurídica é diferente de bem comum, ao qual, com freqüência, até se opõe – aquilo que, no interesse da segurança, muitas vezes é summum ius, sob o ponto de vista do bem comum é summa iniuria. A segurança jurídica, por vezes, permite que a lei e o Direito se transformem em doença incurável. Por outro lado, segurança jurídica e justiça mantêm estreito relacionamento entre si, confundindo-se até. A segurança jurídica exige a mesma generalidade das normas que integra a essência da justiça: só a norma geral pode regulamentar, com anterioridade, casos vindouros e fundamentar o Direito justo para o futuro. Direito incerto, além disso, é, ao mesmo tempo, Direito injusto, pois não pode assegurar igualdade de tratamento a casos futuros assemelhados; pode-se, por isso, traduzir a idéia de segurança jurídica como igualdadeperante a lei, como afirmou Lord Bacon: legis tantum interest ut certa sit ut absque hoc nec iusta possit (a certeza da lei é tão importante que, sem ela, a lei não conseguiria ser justa) (8). A segurança jurídica comparte também com a justiça seu caráter liberal individualista: não significa segurança do Direito no interesse do Direito, mas segurança do Direito no interesse individual – contra o arbítrio e, neste sentido, em defesa da liberdade.
A segurança do Direito, ao contrário da justiça, não é um valor absoluto e indispensável. Por mais forte que seja a já referida tensão entre ela e o bem comum, em sentido restrito, seu valor resulta de sua utilidade para o bem comum, em sentido amplo. Utilidade que foi destacada, de forma impressionante, por Jeremy Bentham – o maior panegirista da segurança, ao lado de Ludwig Knapp, recentemente sacados do esquecimento por Luigi Secco (9). Bentham via na segurança jurídica a propriedade essencial da civilização, a diferença entre a vida dos animais e a dos homens, pois é ela que possibilita fazer planejamentos para o futuro, trabalhar e economizar. Só ela pode garantir que a vida não seja apenas uma série de momentos particulares, mas uma sucessão contínua. Só ela estabelece uma cadeia entre o presente e o futuro, tecida pela prudência e a previsão, projetando-se sobre as gerações que se seguirão.

Não é necessária pormenorizada exposição sobre o fato de que nós e todo o mundo nos encontramos longe daquela visão panegírica apaixonada de Bentham. Em primeiro lugar, a Escola do DireitoLivredemonstrou que a pretendida segurança quanto à decisão judicial não existe, ao menos na forma como era imaginada, pois, freqüentemente, o que determina a decisão, mais do que se pensava, não é a lei e sim a opinião do juiz. Os juízes foram então estimulados a criar o Direito, a criar uma jurisprudência imprevisível. A seguir, o legislador ampliou o espaço de competência deixado aos juízes, assim como a possibilidade de decisões inesperadas, fenômeno que recentemente foi acolhido pelas consciências em geral sob o título de fugapara as cláusulasgerais (10). Sob múltiplas formas, foi confiada ao juízo de valores dos juízes a decisão sobre todas as áreas do Direito – mesmo aquelas em que, até então, predominava rigorosamente o princípio da legalidade, como o Direito Penal, no qual se estabelecera o firme bastião da certeza jurídica através da proibição da punibilidade com fundamento na analogia. Nem falta coragem para a elaboração jurídica contra legem sempre que, em conseqüência a mudanças políticas, uma lei ainda em vigor contraria o espírito do novo regime. Em Estados nos quais os obstáculos à legislação foram eliminados pela unificação de legisladores e administradores, há o risco da fácil modificação do Direito, até como solução de situações individuais.

Como chegou o ideal da segurança jurídica a este grau de depreciação? De 1871 a 1914, experimentamos uma época de estabilidade nas relações sociais tão longa como talvez nunca tenha ocorrido na história da humanidade. O período capitalista produzia a necessária segurança jurídica: Max Weber demonstrou cabalmente que um Estado e um Direito racionais eram necessários ao capitalismo e foram por ele criados (11).Jakob Burckhardt pôde afirmar que toda a Moral daquela época estava essencialmente orientada para a segurança, de formaque, ao menoscomoregra, cumpria ao individuo tomar asmaisgravesdecisõessobre a defesa de suacasa e de seubem-estar. A segurança exigia, comocondição da felicidade, a subordinação do arbítrio a umDireito assegurado pelapolícia, a regulamentação de todas as questões relativas à propriedadeatravés de leis positivas objetivas, a maiorsegurançapossível aos lucros e ao comércio. E aquiloque o Estadonão podia fazer, o regime de seguros podia. MasBurckhardt não ocultou certa dúvida a respeito desta segurança burguesa quando afirmou que a segurança foi deficiente, emelevadograu, em várias épocas revestidas de eternoesplendor e que ocuparãoposiçãodestacada na história da humanidadeaté o fim dos tempos. Em Atenas deve ter imperado o sentimento de segurança em intensidade tal que jamais será igualado no mundo (12).
A questão da segurança impactava muito mais duramente a juventude daquela época. Para comprová-lo, apresento um texto juvenil escrito em 1910, na primeira edição de minha Einführung in die Rechtswissenschaft (Introdução à Ciência do Direito): certamente podemos considerar a ciência e a ordem jurídicas, a lei natural e a norma, comogigantescalutapelaeliminação, da face da terra, doinevitável e do acaso. Mas, e se estes conseguissem realmente sair vitoriosos, tornando a vidaabsolutamente previsível, valeria a pena viver? O acaso e a imprevisão, o inesperado, a surpresa e a decepção, o doce sofrimento do retardando e a fascinantesensação de perigo do accelerando tornam a música sedutora e, da mesmaforma, fazem comque amemos a vida: o inesperado é a mais antiga dentre as coisas nobres do mundo (Nietzsche). Como seria a vida se não pudéssemos mais espera rpelo milagre? Aquelequenão estiver totalmente mergulhado no quotidiano preferirá sempre a felicidade da incerteza à certeza da felicidade. Embora a ordem jurídica esteja longe de dominar a incerteza, umnúmerosemprecrescente de requintadas naturezas humanas sofre ainda hoje a cinzenta regularidade davida burguesa: quantosnãoserão os homensemcujoberço, ou, digamos de forma mais cuidadosa, emcujomomento do crismanão se possa jádescobrir o esquema de sua oração fúnebre? O instinto daaventura, de enfrentar o perigo, o impulso fáustico de transformar o próprio egoemego do mundo, o prazer romântico pelaindisciplina da beleza e a exuberância da existência, voltam-se contra a regularidade e a ordem do Direito e arrastam o homem, consciente ou inconscientemente, emdireção ao anarquismoafetivo.” Frágeis ecos do “viver perigosamente”, exaltado por Nietzsche.