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sábado, 25 de maio de 2013

Os fins do Direito (1) 2


Aristóteles definiu categoricamente: justiça é igualdade. Não tratamento igual para todos os homens e casos, mas igualdade quanto à medida de tratamento. Diversidade de tratamento, de acordo com a diversidade entre as pessoas e os fatos. Portanto, não absoluta igualdade no tratamento, mas proporcionalidade: suum cuique (a cada um o seu). Esta é a justiça distributiva de Aristóteles. Sua iustitia commutativa é apenas uma aplicação dela, ou seja, é a justiça distributiva aplicada a pessoas consideradas iguais. Somente pressupondo a igualdade das partes pode-se exigir igualdade entre prestação e contraprestação – pois se a uma delas fosse concedido mais do que ela prestou, ela seria beneficiada em relação à outra (3). Se iustitia commutativa é a aplicação da justiça a pessoas cuja desigualdade é considerada irrelevante, equidade significa, ao contrário, a justiça que se aproxima, tanto quanto possível, das particularidades mais individualizadas do caso concreto. Mas, mesmo neste extremo de particularização, a justiça continua sendo a aplicação de uma medida universal. Pressupõe um mínimo de semelhança entre pessoas e fatos, abstraindo de sua individualidade mais profunda, e trata, pois, como iguais, situações que, na realidade, são diferentes. Apesar de seu caráter proporcional, justiça significa igualdade de tratamento jurídico a grupos de pessoas ou fatos mais ou menos amplos, ou, o que dá no mesmo, a aplicação de regras mais ou menos gerais na regulamentação destes comportamentos.

O que explica a valorização da igualdade no comportamento jurídico, ou o caráter geral da norma? A resposta foi tentada a partir da necessidade de conciliar a inveja universal – mas não explica o sentimento de justiça das pessoas não envolvidas no problema. Foi procurada a partir do sentimento estético da simetria – mas outra vez não explica a violência elementar e explosiva do sentimento de justiça. Foi considerada exigência do bem comum – iustitia fundamentum regnorum (a justiça é o fundamento dos impérios) – pois a injustiça gera perturbação do equilíbrio social e leva ao perigo da violência revolucionária. Mas, desta forma, confunde-se causa e efeito: uma situação não é injusta porque provoca desequilíbrio social, mas exatamente ao contrário: provoca o desequilíbrio social por ser injusta. Na verdade, do ponto de vista psicológico, a justiça só pode ser considerada um sentimento primordial e inevitável; do ponto de vista filosófico, deve ser considerada um valor entre os demais valores absolutos como o bem, a verdade e a beleza.

É impossível deduzir uma norma jurídica exclusivamente da justiça, como pode ser demonstrado por um exemplo do Direito Penal. A justiça determina que deve ser imposta pena grave a quem revela culpa grave e pena leve a quem age com culpa mais leve. Não afirma, no entanto, que o homicídio seja mais grave do que o roubo. Cria, porém, instrumentos para que se possa dosar a culpabilidade, que será maior ou menor, em função do grau de perigo oferecido ao bem comum. Não diz também como o culpado deve ser castigado – se o assassino deve ser torturado na roda e o ladrão enforcado ou se o primeiro deve ser recolhido à prisão perpétua e o segundo à prisão temporária. Não cria, também, o sistema de penas, mas só determina o tipo de pena aplicável, dentro de um sistema de punições previamente estabelecido: a espécie de pena em concreto deverá ser determinada em função da importância para bem comum. A justiça só estabelece, pois, a relação entre determinada pena e seu grau, com base em um sistema de penas dado. O conceito de culpa e o sistema de penas devem ser estabelecidos, então, a partir da idéia de bem comum. A justiça, portanto, define apenas a punibilidade relativa, não a absoluta. É também em razão dela que este conceito relativo resulta de uma medida geral – o conceito de culpa – delimitada por uma escala geral de penas e de sua graduação. Este exemplo revela, de um lado, o caráter relativo e, de outro, a natureza geral da justiça.
O caráter relativo da justiça significa que ela deve relacionar entre si, comparar e conciliar, os indispensáveis conceitos de maioria de pessoas, de situações jurídicas e de interesses em conflito. Justiça é, essencialmente, solução de conflitos. Le problème de la justice – afirma Georges Gurvitch – ne se posequesi l’on admet la possibilite d’un conflit entre des valeurs morales equivalentes. La justice suppose essenciellement l’existence de conflits; elle est appelée à harmoniser les antinomies; dans une ordre harmonique par avance..., la justice est innaplicable et inutile. (O problema da justiça – diz Georges Gurvitch – não se coloca senão quando é admitida a possibilidade de um conflito de valores morais equivalentes. Supõe essencialmente a existência de conflitos; deve harmonizar antinomias; em uma ordem harmônica pré-estabelecida... ela seria inaplicável e inútil) (4). Muito particularmente, a justiça não é pensável nas relações entre comunidade e indivíduo quando se afirma a impossibilidade de conflito entre estes, reconhecendo-se a supremacia incondicional do bem comum sobre qualquer interesse individual. Contra tal concepção levantou-se Del Vecchio de forma agradavelmente decisiva: A pura negação apriorística da oposiçãoexistente..., afirmar, porexemplo, que o Estado é a única realidade e o indivíduo é porele absorvido ou é comele identificado, não é umbommétodo... Estado e indivíduo são dois elementos da realidadeque,embora possam e devam estaremharmonia e de acordo, não podem ser negados, pois existem. A afirmação... segundo a qualumououtro destes elementos, por ser irreal ou idêntico ao outro, não deveserlevadoemconsideração... de fato, não dá nenhum passo em direção à solução do problema (5). A idéia de justiça pressupõe a possibilidade de tensão entre a comunidade e o indivíduo, que ela exatamente tem por tarefa superar. É um contrapeso individualista-liberal à idéia superindividualista de bem comum.