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segunda-feira, 1 de julho de 2013

Os fins do Direito (1) 3

A justiça transfere seu caráter relativo ao conceito de Direito no qual predomina: Direito é também solução de conflitos. Por isso, a noção de Direito participa da natureza geral da justiça: Direito é solução de conflitos a partir de normas gerais, afirmação que pode ser comprovada por uma dedução a partir do conceito de Direito (6) – aqui, basta uma prova indireta: a norma jurídica não poderia distinguir-se das demais normas se não fosse uma forma de solução de conflitos e não possuísse caráter geral. Somente quando ela se considera uma forma de solução de conflitos pode distinguir-se das puras normas de orientação a funcionários públicos; somente quando nela se reconhece o caráter geral pode distinguir-se da sentença e do ato administrativo. Uma norma destinada a servir exclusivamente ao bem comum é uma determinação administrativa, não Direito. Estes exemplos demonstram também que o fenômeno ao qual é necessário negar a qualificação de norma jurídica não perde, de forma alguma, sua justificação. Uma ordem contra determinada pessoa pode justificar-se como medida de exceção e não será necessariamente arbitrária. Não tem caráter jurídico. Não perde apenas o rótulo jurídico, mas também a indescritível ênfase que vibra a partir deste nome e a força moral que dele emana. Por isso os Partidos Políticos vitoriosos transformam sempre seus interesses particulares em normas jurídicas de caráter geral – e a partir desta transformação buscam lograr conseqüências muito concretas.

Permito-me oferecer outro exemplo histórico. A liberdade, em qualquer sentido, era uma necessidade e uma reivindicação da burguesia ascendente, formulada como exigência jurídica fundada no Direito Natural. Por isso a burguesia não podia exigi-la exclusivamente para si, precisava fazê-lo de forma geral, ou seja, para todos. Mas esta liberdade como direito, exigida e conquistada sob forma geral, trouxe também em seu seio a liberdade de associação para a ativa classe dos trabalhadores, transformando-se em instrumento de luta exatamente contra a classe cujo interesse pela liberdade se transformara em direito. Em virtude da forma jurídica que normalmente passam a adotar as reivindicações políticas, os poderosos, em geral, só podem impor encargos sobre seus dominados quando os assumem também; da mesma forma, só podem reivindicar vantagens quando estão dispostos a assegurá-las também a seus subordinados. Na verdade, essa generalização pode continuar sendo mera aparência, pois (nas palavras irônicas de Anatole France), a lei,em sua majestosa igualdade, proíbe ricos e pobres de mendigar nas ruas, dormirembaixo de pontes e roubar pão – mas pode também adquirir significado muito real, como na hipótese da liberdade de associação. Por isso o Direito de Classe, pelo fato de ser Direito, ou seja, por ter assumido a forma da generalidade e da igualdade, pode constituir-se em algo valioso, ao menos em certa medida, também para os oprimidos, as minorias, os fracos e os excluídos.
Em suma: a justiça distingue-se claramente de bem comum e, como fim do Direito, encontra-se até em certo relacionamento conflituoso com ele. Pressupõe a situação de conflito, ao contrário da idéia de bem comum que não lhe dá atenção ou até a nega. A justiça coloca na balança bem comum e interesses jurídicos individuais, enquanto, ao contrário, a idéia de bem comum mantém seu caráter individualista-liberal. Caracteriza-se ela pelas marcas da igualdade e da generalidade, que não desempenham nenhum papel em relação ao bem comum. Finalmente, a idéia de justiça imprime seu caráter no conceito de Direito, ao reconhecê-lo como forma de solução de conflitos através de normas gerais. Exclusivamente a partir da idéia de bem comum, não pode ser deduzido o conceito de Direito. Não há dúvida de que a justiça é essencial ao bem comum – como fundamentum regnorum. Sua essência não decorre, todavia, desta utilidade para o bem comum; ao contrário, ela é útil a ele por sua própria legitimidade – exatamente como a ciência e a arte, que somente o servem quando, sem nenhuma preocupação com ele, realizam suas próprias leis de verdade e beleza. Portanto, para compreender a justiça dentro de um conceito mais amplo de bem comum, deve-se distingui-la imediatamente do conceito restrito de bem comum.

Semelhante é o resultado da discussão sobre segurança jurídica, aqui exposta. Em primeiro lugar, é necessário determinar o conceito de segurança jurídica, que pode ser entendido de três maneiras (7):

1 - Como segurança por meio do Direito: segurança contra o homicídio, contra o roubo e o furto, segurança no trânsito etc. Segurança jurídica, neste sentido, é elemento do bem comum, nada tendo a ver, portanto, com nosso tema, embora, naturalmente, seja ela afim ao que entendemos por segurança jurídica, pois pressupõe que haja segurança no próprio Direito.

2 - A segurança do Direito exige o firme conhecimento da norma jurídica, a prova cabal dos fatos dos quais sua aplicação depende e a correta execução do que foi promulgado como Direito. Trata-se da certeza do Direito vigente em determinado momento, não de sua validade. Certeza que seria ilusória se, por qualquer motivo, a qualquer tempo, pudesse o legislador eliminá-la. Por isso, a certeza de determinado Direito vigente precisa ser completada, ao menos em certa medida, pela

3 -segurança do Direito contra modificações, através de limitações previstas no sistema legislativo – como a divisão dos Poderes e as dificuldades impostas às alterações constitucionais –. Mas segurança jurídica, neste terceiro significado, normalmente, não diz respeito ao Direito objetivo e sim ao subjetivo: é a proteção ao direito adquirido. Este princípio, conservador e, em determinadas circunstâncias, reacionário, não tem relação com nossa matéria. Precisamos, no entanto, abordá-lo porque, sem ele, a segurança do Direito em vigor, em si mesma, seria uma ilusão; é necessária a segurança contra modificações arbitrárias, a qualquer momento, ou, como já afirmamos, é necessária uma certa dose de segurança contra alterações do Direito.