Não são necessárias longas provas para demonstrar que a segurança jurídica é diferente de bem comum, ao qual, com freqüência, até se opõe – aquilo que, no interesse da segurança, muitas vezes é summum ius, sob o ponto de vista do bem comum é summa iniuria. A segurança jurídica, por vezes, permite que a lei e o Direito se transformem em doença incurável. Por outro lado, segurança jurídica e justiça mantêm estreito relacionamento entre si, confundindo-se até. A segurança jurídica exige a mesma generalidade das normas que integra a essência da justiça: só a norma geral pode regulamentar, com anterioridade, casos vindouros e fundamentar o Direito justo para o futuro. Direito incerto, além disso, é, ao mesmo tempo, Direito injusto, pois não pode assegurar igualdade de tratamento a casos futuros assemelhados; pode-se, por isso, traduzir a idéia de segurança jurídica como igualdadeperante a lei, como afirmou Lord Bacon: legis tantum interest ut certa sit ut absque hoc nec iusta possit (a certeza da lei é tão importante que, sem ela, a lei não conseguiria ser justa) (8). A segurança jurídica comparte também com a justiça seu caráter liberal individualista: não significa segurança do Direito no interesse do Direito, mas segurança do Direito no interesse individual – contra o arbítrio e, neste sentido, em defesa da liberdade.
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Não é necessária pormenorizada exposição sobre o fato de que nós e todo o mundo nos encontramos longe daquela visão panegírica apaixonada de Bentham. Em primeiro lugar, a Escola do DireitoLivredemonstrou que a pretendida segurança quanto à decisão judicial não existe, ao menos na forma como era imaginada, pois, freqüentemente, o que determina a decisão, mais do que se pensava, não é a lei e sim a opinião do juiz. Os juízes foram então estimulados a criar o Direito, a criar uma jurisprudência imprevisível. A seguir, o legislador ampliou o espaço de competência deixado aos juízes, assim como a possibilidade de decisões inesperadas, fenômeno que recentemente foi acolhido pelas consciências em geral sob o título de fugapara as cláusulasgerais (10). Sob múltiplas formas, foi confiada ao juízo de valores dos juízes a decisão sobre todas as áreas do Direito – mesmo aquelas em que, até então, predominava rigorosamente o princípio da legalidade, como o Direito Penal, no qual se estabelecera o firme bastião da certeza jurídica através da proibição da punibilidade com fundamento na analogia. Nem falta coragem para a elaboração jurídica contra legem sempre que, em conseqüência a mudanças políticas, uma lei ainda em vigor contraria o espírito do novo regime. Em Estados nos quais os obstáculos à legislação foram eliminados pela unificação de legisladores e administradores, há o risco da fácil modificação do Direito, até como solução de situações individuais.
Como chegou o ideal da segurança jurídica a este grau de depreciação? De 1871 a 1914, experimentamos uma época de estabilidade nas relações sociais tão longa como talvez nunca tenha ocorrido na história da humanidade. O período capitalista produzia a necessária segurança jurídica: Max Weber demonstrou cabalmente que um Estado e um Direito racionais eram necessários ao capitalismo e foram por ele criados (11).Jakob Burckhardt pôde afirmar que toda a Moral daquela época estava essencialmente orientada para a segurança, de formaque, ao menoscomoregra, cumpria ao individuo tomar asmaisgravesdecisõessobre a defesa de suacasa e de seubem-estar. A segurança exigia, comocondição da felicidade, a subordinação do arbítrio a umDireito assegurado pelapolícia, a regulamentação de todas as questões relativas à propriedadeatravés de leis positivas objetivas, a maiorsegurançapossível aos lucros e ao comércio. E aquiloque o Estadonão podia fazer, o regime de seguros podia. MasBurckhardt não ocultou certa dúvida a respeito desta segurança burguesa quando afirmou que a segurança foi deficiente, emelevadograu, em várias épocas revestidas de eternoesplendor e que ocuparãoposiçãodestacada na história da humanidadeaté o fim dos tempos. Em Atenas deve ter imperado o sentimento de segurança em intensidade tal que jamais será igualado no mundo (12).
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